O REINO DOS CANTADORES OU SÃO JOSÉ DO EGITO etc., COISA E TAL


Por: Carlos Alberto Cavalcanti

Um quarto de século vem marcar, em 2021, as comemorações alusivas à primeira edição do livro de autoria do saudoso professor José Rabelo de Vasconcelos, publicado em 1996, pela CEPE, obra com que proclama, alto e bom som, o seu amor incondicional à terra que lhe serviu de berço, assim como divulga a prática do Repente, com a autoridade de quem conhece o fundamento teórico e o manejo da métrica e das rimas que estruturam a poesia oral expressa nesse formato de poesia que representa um traço interligado às manifestações culturais da região do Pajeú, notadamente em São José do Egito, onde a Cantoria está sentimentalmente associada à vida do povo através das costumeiras pelejas que reúnem figuras antológicas da tradição do Repente e enraíza, no meio do povo, a continuidade dessa influência benéfica entranhada na história e nas emoções desse povo sertanejamente feliz, guardiões do Reino dos Cantadores, tendo São José do Egito como a capital desse império da viola e do verso.

Rabelo resgata e projeta essa riqueza da poesia oral através da exemplificação que constitui a estrutura do seu livro, onde, em torno de 75 páginas, ele vai descrevendo, passo a passo, as atribuições delegadas aos componentes desse Reino e, numa riqueza metalinguística, as variantes da composição poética com que se dá a peleja ou a apresentação solo. São, ao todo, 15 baiões.

A obra se agiganta, então, na medida em que expressa o vínculo telúrico do autor por sua terra, vínculo inseparável nas lembranças do autor, mesmo quando longe se encontrou por razões de estudo ou luta pela sobrevivência.

A biografia de Rabelo aparece já na segunda edição do livro, publicada em 2014, pela BAGAÇO (páginas 101 a 122), um acréscimo substancial e necessário, pelo que não nos alongaremos nesse detalhe.

Vale ressaltar que, por onde passou Zé Rabelo, em Pernambuco ou fora do estado, os traços potencialmente relevantes da ligação de Rabelo com a Educação, a vida jurídica e a política vão marcar cada metro quadrado de sua presença.

Rabelo foi dotado, pela natureza, da arte de falar. A oratória pedagógica, forense ou parlamentar são, sem dúvida, aspectos enriquecedores de sua personalidade forte e inquieta de homem corajoso e decidido.

Se não vestiu a batina para o exercício formal da vida religiosa, vestiu-se, contudo, do manto dos ensinos apostólicos de amor ao próximo, perdão e desapego às vaidades de bens materiais.

Seu patrimônio maior foi o cabedal de conhecimentos culturais – e desse ele poderia ser vaidoso – pois não tomou de ninguém, mas o construiu com suor e lágrimas.

Rabelo soube se portar diante das adversidades da vida pública. Seja quando não logrou êxito em candidaturas, seja quando, vitorioso, a truculência da Ditadura lhe tolheu a liberdade do exercício do mandato.

Lembro de Rabelo aqui em Arcoverde, candidato a prefeito pelo PMDB, um franco atirador, pois o artifício da legenda findou validando a candidatura do opositor, seu amigo Dr. Ruy de Barros. Mas Rabelo não perdia o equilíbrio e a elegância da disputa. Dizia ele no palanque: “A verdade não rui!” (num trocadilho irônico e crítico entre a eufonia verbal e nominal associada ao opositor do PSD).

Mas, como disse, deixemos as digressões biográficas de lado e retomemos a assertiva sobre a obra e o seu gigantismo. Além do aspecto telúrico que mantém Rabelo impregnado de lirismo e sonhos em relação a São José do Egito e adjacências, a obra presta um grande serviço cultural ao relacionar nomes pontuais entre os praticantes do Repente, aos quais ele designa pelo tratamento monárquico correspondente; quanto didático, na medida em que, com a habilidade intelectual e a sensibilidade poética que lhe são peculiares, Rabelo cuida em instruir o leitor sobre os fundamentos da poesia popular, demonstrando, na construção do poema, a ampla variedade de estruturação dos versos e das estrofes tanto quanto da métrica, de modo que o livro, além de encantar pelo lado artístico de projetar o torrão natal aos quatro ventos, também encanta pela concepção teórica e a demonstração segura e competente com que o autor vai ilustrando a narrativa poética. Sem dúvida, temos aí um curso sobre a criação poética pelo viés da poesia popular, herança europeia que se fixou nessas paragens sertanejas.

Assim, ele vai construindo, em cada baião, a narrativa poética que se torna envolvente e nos remete a uma profunda reflexão sobre a importância da preservação e divulgação cultural da experiência de um povo que, talvez, na ótica apressada de observadores destituídos de embasamento sólido sobre a região, não vejam além das notícias associadas às mazelas da seca, como é o que ocorre com o Nordeste desde os primórdios de sua existência geográfica e social.

Após um prelúdio intitulado LOUVAÇÃO DO PAJEÚ (p. 21), vem a parte que engloba os baiões, cada qual com uma epígrafe explicativa a que se refere. Evidentemente, o BAIÃO I trata de apresentar a cidade (sede do Reino Poético) que vai da página 23 até a 29, reunindo uma riqueza de informações geográficas, históricas, antropológicas, um documento de alto nível, digno de registro em Cartório. Do BAIÃO II até o IV (p. 30 a 38), há referências sobre o território que abrange o Reino, os integrantes da Dinastia e a população dos súditos.

No BAIÃO V (p. 39), expõem-se a legislação penal adotada pelo Reino, no BAIÃO XIII (p. 93 a 94) afirma-se sobre a Ciência do Reino e no BAIÃO VI (p. 42 a 44), destaca-se o aspecto ritualístico do Reino, condensado no Decálogo. Esse tema é retomado no BAIÃO X (p. 84 a 87) e no BAIÃO XI (p. 88 a 91).

O BAIÃO VII (p. 45 a 49), o BAIÃO VIII (p. 50 a 66), o BAIÃO XII (p. 92) e o BAIÃO XV (p. 96) são, respectivamente, onde o autor reúne, a um só tempo, a teoria e a prática sobre a criação poética manifesta na oralidade do Repente. Só um professor da envergadura de um Rabelo para proceder, com profundidade, a demonstração teórica que perfaz todo o caminho criativo das modalidades associadas às várias manifestações da Cantoria e, como é o caso do BAIÃO VIII, exemplificar cada caso com textos extraídos do repertório regional, criações fantásticas do homem simples e do poeta completo, resgatando, para o mundo, esse mundo impressionante da poesia popular construída com a maestria do improviso do mote e o desdobramento das estrofes irretocavelmente perfeitas na oração (a mensagem do poema), na métrica e na rima. O BAIÃO XII, por sua vez, desaprova peremptoriamente a quem canta versos decorados.

No BAIÃO IX (p. 67 a 83), o professor Zé Rabelo apresenta uma antologia humorística de piadas contadas ao sabor do improviso, característica muito acentuada no perfil desse Império Poético e no BAIÃO XIV (p. 95) há uma referência à morte do Faraó Lourival Batista (o terceiro da nobreza), mas, ao contrário de lamentações, diz o professor Zé Rabelo: “ mesmo assim se está contente/por não faltar sucessor/ vez que a muito cantador/capaz de ser Presidente [...] Faraó ou Presidente/à Nação não faltará/que o País dos Cantadores/para sempre viverá”.

Se não lhe foi possível, em sua terra querida, a criação de uma Faculdade, razão maior de se expor em campanhas municipais carregadas da desigualdade em relação ao poder econômico, Rabelo conseguiu, ao aportar em Arcoverde, ser Diretor da Faculdade local, exercer o magistério com aquela paixão literária que o fez um ícone regional na sapiência múltipla do domínio da LÍNGUA e da LITERATURA e, depois de uma batalha hercúlea diante da resistência dos setores competentes sobre a aprovação de disciplinas junto ao MEC, em Recife, conseguiu aprovar a inclusão de LITERATURA SERTANEJA na Grade Curricular da Faculdade, hoje, CESA – Centro de Ensino Superior de Arcoverde.

Que tais vitórias sejam reiteradas diante da comunidade acadêmica e do povo em geral, para registro histórico e incentivo a novas conquistas que deem continuidade, aqui e além, dos frutos de uma colheita que muito nos orgulha.

*(Texto escrito em 2021, para comemorar os 25 ANOS DA PRIMEIRA EDIÇÃO)

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