TE(R)ÇA COM CYL GALLINDO: MISSÃO HONROSA - LEITURA, BIBLIOTECA E CULTURA

                     Cyl Gallindo por: Alex Soares

"Te(r)ça com Cyl Gallindo" é direcionado aos leitores, bibliotecários, amigos, professores e pais, nossa intenção é manter viva a memória da vida e obra do escritor buiquense Cícero Amorim Gallindo, que nos apresenta seu amor incondicional pela leitura a partir da descoberta das primeiras letras. O texto escolhido foi escrito por Cyl Gallindo para o site da Biblioteca Pública do Estado de Pernambuco no dia 05/10/2012. Lembrando que hoje o nosso amigo e escritor estaria completando 84 anos, mas #CylVive.

MISSÃO HONROSA


Na década de 1960, morava eu na Casa do Estudante do Brasil, quando me ofereci para prestar serviços auxiliares à Biblioteca. Meu único objetivo era ficar junto aos livros. Poder manipulá-los. Tê-los nas mãos. Conferir autores.

Diante da minha satisfação, a bibliotecária benevolente instruiu-me na preparação de uma ficha catalográfica, orientando-me a ver os mínimos detalhes de uma obra: autor, título editora, data, número de páginas, tema, ou temas, ilustrações, os números de CDU e CDD. Concluindo com a informação: o livro fica sintetizado na ficha.

De lá até os dias atuais, não começo a ler livro algum sem olhar essas informações, viraram mania.

Foi aí que pela primeira vez convivi verdadeiramente com o objeto da minha paixão. O livro sempre exercera uma grande fascinação aos meus olhos. Mas, na infância e boa parte da juventude, nascido numa cidade do interior, classe média, nos padrões locais, não tive aquela máxima de “livros a mão cheia”. Que eu me lembre, nenhuma casa da cidade tinha uma estante com livros. Via o padre lendo missais ou a bíblia. O meu avô Miguel Pinto do Amorim lia Seleções e os jornais, comprados uma vez por semana na cidade vizinha.

No pré-primário, estudei a Carta de ABC. Nunca esqueci os provérbios, lidos cantando: “A preguiça é a chave da pobreza”“Quem não ouve conselhos raras vezes acerta”.

Dessa fase estudei numa cartilha, que tinha uma crônica com o título Kossiusko, o qual eu jamais esqueci, mesmo sem saber o que significava. E por nunca haver esquecido, descobri tratar-se de um monte 2.230 metros de altura, localizado entre a grande cordilheira da Austrália continental e o Parque Nacional de Kossiusko. Assim batizado em 1840, pelo explorador polaco Paul Strzelecki, em homenagem ao herói daquele País General Tedeusz Kossiuszko.

Terminado o 3º. ano primário, repetido para “não perder o que aprendeu” como entendiam os meus pais, recebi aulas particulares com Mercedes Cursino. Foi um tempo curto este, mas muito marcante, graças principalmente ao livro Crestomatia, de Radagasio Taborda, que me fora por ela presenteado. Foi a minha bíblia, até os 20 anos, já morando no Recife.

Esse livro eu li, reli, treli, indo e vindo a cavalo ao sítio do meu pai. Dele, acompanham-me até os dias atuais poemas e narrativas, alguns decorados naquela época.

Ao me mudar para o Rio de Janeiro, em 1958, deixei encaixotados junto ao volume da Crestomatia, cadernos, cartilhas, desenhos, enfim aquilo que considerava o meu patrimônio cultural, para que nada se perdesse. Em viagem de férias ao Recife, dois ou três anos mais tarde, indaguei pelo caixão. Informaram-me que mofo, traças, baratas e ratos haviam tomado conta dele e a única solução encontrada foi jogá-lo fora do jeito em que se encontrava, por decisão da minha própria mãe, capaz de escalar uma parede de dez metros para se livrar de uma barata. Sem direito a um til de contestação, fui pro lixo também, naquele dia.

Quem entenderia que ali estavam também os meus escritos de criança à juventude. O poema sobre o cafezal do meu pai, o galo de campina que rasgava o céu cantando, a cachoeira do sítio de Felix de França acolhendo a tropa de escoteiro, da qual fui lobinho, minha mãe, o jumento ferrinho, e muitas das minhas paixões? Não sei se tinham valor literário, sei que tinham meus sonhos, meus desenganos a minha vida. Besteiras de criança.

Sei também que Anne Frank escrevendo suas besteiras de criança, deixou um dos mais contundentes depoimentos contra o nazismo.

Na apresentação de um livrinho de minha filha Guajassy, escrito e ilustrado por ela aos 10 anos de idade, recomendei:

Mães, creches, escolas se espelharão na criança, para cuidar de outras crianças. Crianças, jovens e adultos seguirão os velhos à procura da razão de viver, da sabedoria da vida.

Recentemente, todas essas reminiscências vieram à tona, motivadas pelo livro Confesso que Li, organizado pelas professoras da UFPB, Neide Medeiros e Yô Limeira, com depoimentos de dezenas de escritores paraibanos, a relatar “os seus primeiros alumbramentos com as suas leituras de infância e adolescências”.

Confessei à professora Neide que me encontrei debulhado em muitas páginas da sua obra. A começar pelo depoimento de Águia Mendes, indicando primeira leitura marcante Crestomatia, com destaque para o poema “História de Um Cão”, de Luiz Guimarães.

Quantas vezes eu encarnei Veludo, protagonista mudo da História De Um Cão, para combater a prepotência.

E somente mais tarde, muito mais tarde, entendi que o prepotente não vê no humilde a pessoa dotada de humildade, mas uma cobaia em quem aplicar a sua prepotência.

A partir daí, deixei de morrer, após entregar a corrente àquele que pretendia me afogar.   Devolvi quantas correntes com quantas medalhas, mantendo-me de pé, olho fixo no ávido proprietário. Foram atitudes difíceis, uma vez que passei a me debater com minhas próprias procelas querendo vinganças. Principalmente na era da ditadura. O tempo cuidou em amaciar as mágoas, e sinto-me tranqüilo.

Vai além desse poema e desse autor, há em Crestomatia outros autores inesquecíveis: Olavo Bilac: Os Três Reis Magos e As Velhas Árvores; Vicente de Carvalho: Velho Tema; Machado de Assis, Carolina; Camões, Soneto Célebre, Sete anos de Pastor e o Episódio de D. Inez de Castro (canto III de Os Lusíadas), D. Pedro II, Grande Povo; Jônatas Serrano, O Cemitério; Afonso Celso, Alegrias; Castro Alves, Duas Flores; Guerra de Junqueira, Regresso ao Lar.

Não posso omitir a leitura das narrativas: Coelho Neto está presente em quase todo o livro. Nenhum iniciante pode deixar de ler O Tempo; A Flauta e o Sabiá; Medeiros e Albuquerque, O Filho do Inspetor; Rui Barbosa, Pátria; Joaquim Nabuco, os Escravos. E quantos mais. A minha vontade é copiar o livro todo.

Alguns anos atrás, convidado pelo então prefeito de Buíque, minha terra natal, fui àquela cidade participar da inauguração da Biblioteca Municipal Graciliano Ramos.

Fiquei tão empolgado e feliz que prometi colaborar com a criação também e no mesmo espaço de uma pinacoteca. A verdade é que naquele momento eu regredia à minha infância, quando nem sabia da existência de uma biblioteca, muito menos de obras arte, com museus, salões, galerias exclusivos para mostrá-las, e conservá-las.

Aquela ignorância deve ser extinta, pensei. De volta ao Recife, apelei para alguns grandes nomes e, meses depois, cheguei com telas de Corbiniano Lins, Guajassy (que pintor na Holanda um retrato de Graciliano). Marta (com patrocínio de Waldemar Lopes) fez um retrato de São Felix de Cantalice, padroeiro da Cidade, Jô Oliveira, Ezilda Goyana, J. Borges, Abelardo da Hora, da argentina Luisa Osdoba. Doutra feita, em companhia de Cyane Pacheco levamos mais uma carrada de quadros, dela própria e outros artistas. Outras obras mais, doadas por Maria de Lourdes Hortas. Preenchemos uma lateral da Biblioteca de telas de importantes nomes. Tudo isso acompanhado de várias caixas de livros, muitos autografados para a Biblioteca.

Apesar de haver voltado à cidade por duas ocasiões, encontrei a Biblioteca fechada, não consegui explicações para o fato.

Este preâmbulo todo é para tentar explicar a importância de uma biblioteca pública para uma sociedade e seus cidadãos.

E se essa Biblioteca cria um site para informar, esclarecer, convidar, enfim para se conectar com o cidadão, no dia-a-dia, onde quer que ele esteja, isto quer dizer que a Cultura passa para a vanguarda dos grandes acontecimentos da vida da comunidade pernambucana, da forma mais moderna possível, que é a internet.

E é isto o que está fazendo agora a nossa Biblioteca do Estado de Pernambuco. Que mais dizer?

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